[f i l m e s d o c h i c o]

29 de jun. de 2004

O PRISIONEIRO DA GRADE DE FERRO

A RASPA DA CANELA DO DIABO

Documentário devassa o Carandiru e se torna o melhor filme brasileiro dos últimos tempos



A verdade. Busca quase obsessiva de quem tenta contar uma história que aconteceu ou que acontece. Raramente exata, fartamente discutível. A incansável procura pela verdade é responsável por alguns dos maiores pecados do documentarista, o cineasta que deveria narrar um fato real sem a ajuda da ficção. A verdade que parece certa é aquela que tem tom de denúncia, que aparece para apontar culpados, revelar segredos, descobrir conspirações. É a tentativa de filme com função social ressaltada, destacada, elevada. Nos últimos tempos, o documentário tenta assumir novas formas com novos objetivos. E alcança resultados muito irregulares. Alguns apontam para construções narrativas fora do padrão, outros muitos investem na proximidade com os programas televisivos comandados por apresentadores espertos que se travestem de portadores dela, a verdade. No meio do caminho, uma sucessão de excessos é cometida em seu nome. Ônibus 174 é um belo exemplo. O (ótimo) trabalho de investigação em torno do homem que matou uma mulher ao assaltar um coletivo no Rio de Janeiro se dedicou com tanta eficiência em explicar as motivações de seu protagonista que peca por quase querer justificar um homicídio.

Diante de um cenário muito propenso ao sensacionalismo, é admirável, extremamente admirável, que surja um filme como O Prisioneiro da Grade de Ferro, excelente longa de estréia de Paulo Sacramento, que trabalha com um tema justamente propenso à parcialidade: o Carandiru. Mas se o primeiro juízo a se fazer sobre um filme que se propõe a mostrar a realidade dentro do presídio é este, o diretor segue por uma estrada completamente avessa ao maniqueísmo. Ele entrega sua câmera para que seus personagens mostrem o que quiserem. O filme, fruto de um curso de cinema e vídeo comandado por Sacramento dentro das grades da penitenciária - pouco antes de sua desativação e conseqüente implosão -, alcança um nível de desprendimento quase total. Seria ingênuo demais afirmar que a câmera do diretor (ou ainda, dos detentos) é completamente franca, sem cálculo, mas o naturalismo que os cineastas-narradores emprestam ao documentário é bem mais honesto que a tentativa tosca de culpar a construção de um país pelo massacre de Columbine. Quase amadores, os presidiários apresentam seu cotidiano com relativamente pouca interferência de um interlocutor. Eles comandam as cenas.

O mais louvável no filme é que ele nunca é um filme-denúncia. O Prisioneiro da Grade de Ferro é muito mais retrato do que acusação. As denúncias obviamente existem, mas surgem espontâneas dentro do mapa traçado pelo diretor. O filme começa político para se tornar familiar. Conta as pequenas histórias de cada personagem. Numa cena particularmente bonita, um pitbull bombadão se transforma num exemplo de prisioneiro, de bom marido. Nesse aspecto, a montagem creditada ao cineasta merece destaque: pula de cela em cela, apresentando, revelando um pouco da investigação particular de cada detento, e finalmente integrando as particularidades ao todo do presídio. Constrói a sua própria verdade a partir dos olhares mais honestos que poderia colher. À medida que o tempo passa, cresce o poder de discurso do filme, que alcança prismas mais sombrios, como o satanismo e o comércio de drogas. E mais uma vez, o faz com desprendimento. O longa de Paulo Sacramento avisa que a verdade é fragmentada e está sendo recriada a todo momento.

O PRISIONEIRO DA GRADE DE FERRO (AUTOS-RETRATOS)
O Prisrioneiro da Grade de Ferro, Brasil, 2003.
Direção e Roteiro: Paulo Sacramento.
Fotografia: Aloysio Raulino. Montagem: Idê Lacreta e Paulo Sacramento. Produção: Gustavo Steinberg e Paulo Sacramento. Site Oficial: http://www.prisioneiro.com.br.

nas picapes: Retrato de um Forró, Eddie.

25 de jun. de 2004

TOP TEN

OS MELHORES E OS PIORES DO SEMESTRE

O último fim de semana do semestre revela as derradeiras estréias nos cinemas brasileiros. Hora de começar a pensar em quais foram os melhores filmes desta primeira metade de 2004. Como no ano passado, proponho fazer uma votação nest blogue, apontando os 10 melhores de filmes do ano até o momento. E, para dar um gosto especial à brincadeira, escolher também os 5 piores filmes. Para ajudar aos de memória fraca, basta dar uma olhada na lista de estréias, aqui. Qualquer um pode participar. Basta enviar para o email deste blog, blogsdochico@hotmail.com, os dez melhores e os cinco piores até o próximo sábado, dia 3 de julho. Os resultados serão divulgados na segunda-feira, dia 5.

P.S.: para critério de desempate, mandem as listas na ordem de preferência. Valem apenas filmes que estrearam em circuito em algum lugar do Brasil no primeiro semestre deste ano. Ou seja, até o dia 30 de junho. Não considerem pré-estréias e filmes exibidos em mostras, festivais e eventos afins.

24 de jun. de 2004

COTAÇÕES

COTAÇÕES PARA CONHECIMENTO

Vez por outra me perguntam sobre as cotações que eu utilizo aqui no blog. Para esclarecer tudo, todas as cotações junto com exemplos de filmes vistos este ano e comentados por estas bandas.

excelente
Elefante, de Gus Van Sant

ótimo
O Pântano, de Lucrecia Martel

bom
Swimming Pool, de François Ozon

regular
Tróia, de Wolfgang Petersen

ruim
A Paixão de Cristo, de Mel Gibson

péssimo
Van Helsing, de Stephen Sommers

23 de jun. de 2004

CAZUZA - O TEMPO NÃO PÁRA

A IDEOLOGIA DA BURGUESIA

"De boas intenções" vencem "o inferno está cheio" no filme mais polêmico da temporada



Seria muito mais cômodo para alguém que se propõe a resenhar filmes encontrar motivos para falar mal de Cazuza ? O Tempo Não Pára. O primeiro seria questionar o teor capitalista do filme que explora uma figura mítica (polêmica e profana) para toda uma geração; um filme que, invariavelmente, faria dinheiro. Segundo, reclamar das indecorosas limitações que o trabalho exala por estar preso a um livro de forte conteúdo moralista e de auto-preservação e comiseração. Terceiro, culpar a equipe envolvida pelo assim entendido fracasso artístico do projeto. Há de se olhar as coisas com olhos mais carinhosos.

O Tempo Não Pára, que seria um título mais satisfatório e menos auto-referente, perdão pelo clichê, é um filme muito honesto, talvez o mais honesto dos últimos tempos na cinematografia brasileira. Sapientíssimos de suas limitações formais e ideológicas, os roteiristas realizaram bastante na sua tentativa de explorar o bastidor do ídolo, o ícone sob a máscara. O texto bem escrito (há exceções pontuais) encontra boa tradução no trabalho dos atores. Daniel de Oliveira assume trejeitos e entrega um Cazuza, no mínimo, sincero. No máximo, espetacular. Não sei até que ponto sua interpretação decorre da imitação, mas reproduzir não induz de alguma forma tradução?

O filme é bem coerente com sua proposta, mesmo reproduzindo um discurso pré-fabricado, oficial e de abrangência restrita. Há saldo no fim das contas. A fotografia, creditada ao co-diretor Walter Carvalho, encontra ângulos inquietos e uma cor nostálgica. O Rio de Janeiro dos anos de Cazuza, eu nunca conheci. Mas confesso que tive saudade. O filme me fez relembrar parte da infância e adolescência que haviam se perdido porque aquilo nunca significou muito ? e talvez ainda seja assim. Quem dá significação sou eu, é você. Eu que já andei pelos quatro do mundo (ouvindo suas canções, sem encontrar identificação ou poesia), foi justamente num filme que ele me falou, veja só...

CAZUZA - O TEMPO NÃO PÁRA
Cazuza - O Tempo Não Pára, Brasil, 2004.
Direção: Sandra Werneck e Walter Carvalho.
Roteiro: Fernando Bonassi e Vitor Navas.
Elenco: Daniel de Oliveira, Marieta Severo, Reginaldo Faria, Andréa Beltrão, Leandra Leal, Emílio de Mello, Cadu Favero, André Gonçalves, Arlindo Lopes, Dudu Azevedo, André Pfefer, Eduardo Pires, Maria Flor, Fernanda Boechat, Pierre Santos, Victor Hugo, Maria Mariana, Débora Falabella.
Fotografia: Walter Carvalho. Montagem: Sergio Mekler. Direção de Arte: Cláudio Amaral Peixoto. Música: Guilherme Vaz. Figurinos: Claudia Kopke. Produção: Daniel Filho. Site Oficial: www.globo.com/cazuzaofilme.

nas picapes: A Small Victory, Faith No More.

21 de jun. de 2004

FILME DE AMOR

TODAS AS COISAS SÃO BELAS

Júlio Bressane supera seu cinema com uma ode à beleza



Confissão: vi pouco e não sou fã de Júlio Bressane. Mas Filme de Amor me tomou de tal forma que vou escrever este texto na primeira pessoa, o que faço restritas vezes. O novo trabalho do diretor (diretor marginal talvez uma forma muito arcaica de se referir ao homem) é um filme com o explícito objetivo de subverter. A primeira vítima de Bressane é o cotidiano, que limita, massacra e reduz os três protagonistas a dias parcos e histórias mínimas. A revelação está entre as cenas finais do longa, que se apresenta com a chegada de um homem e duas mulheres a um apartamento, onde, durante um fim-de-semana, haverá a celebração da beleza, do prazer e do amor.

Bressane nunca se prendeu às formas narrativas tradicionais. Seu cinema é muito mais de impressões que de histórias. Em Filme de Amor, não é diferente. O fiapo que o cineasta joga para que o espectador não se perca nos seus devaneios estéticos é apenas condutor para a ode que ele pretende. Uma ode a tudo que é belo, divino e profano. O filme reproduz com seus atores telas de pintores mitificados e sobrepõe textos de autores que filosofam sobre o erotismo e a plenitude. A fotografia de Walter Carvalho, talvez o melhor fotógrafo em atividade, traduz na concepção de imagens mais perfeita que - ouso dizer - o cinema brasileiro já viu toda a explosão de Bressane.

A proposta poderia resultar em pura masturbação intelectual, mas com sua a releitura do mito das três Graças, o diretor consegue dialogar com o sublime e atingir um patamar muito próximo ao divino. Um ponto capaz de fazer seus personagens voarem para longe de prisões formais em busca de algo além. É a criação que brota do caos.

FILME DE AMOR
Filme de Amor, Brasil, 2003.
Direção: Júlio Bressane.
Roteiro: Júlio Bressane e Rosa Dias.
Elenco: Bel Garcia, Josie Antello e Fernando Eiras.
Fotografia: Walter Carvalho. Montagem: Virgínia Flores. Direção de Arte: Moa Batsow. Música: Guilherme Vaz. Figurinos: Helen Milet. Produção: Tarcisio Vidigal e Lúcia Fares.

nas picapes: My Way, Sex Pistols.

20 de jun. de 2004

RESPIRO

RAJADA DE VENTO NUMA PRAIA DA SICÍLIA

História pequena discursa sobre o que move cada um



A diferença é o que faz a diferença. Não ser mais do mesmo é passível de punição, afastamento, exclusão. Não há sentimento pior de que o de não fazer parte. A falta de cumplicidade é o que mais entristece o coração da protagonista de Respiro. Valeria Golino, em boa forma, é a dona de casa e mãe da família que peca aos olhos dos vizinhos porque exalta a plenitude e não se prende a padrões de comportamento. Sua peculiaridade incomoda, atrapalha e finalmente extrapola os limites etéreos impostos por um pequeno vilarejo em algum ponto do litoral siciliano. Siciliano, eu disse. Fosse filmado sob lentes do outro lado do Atlântico, o filme certamente padeceria de um oceano de obviedades. Mas a diretora Emanuele Crialese (perigo uma mulher comandar um filme com esse plot), tal qual sua personagem, nada contra a maré, transcende pré-conceitos e chega à superfície com fôlego restituído.

Respiro fala com inquietante sinceridade sobre querer a liberdade. Por mais tolo e primário que isso possa parecer. O estilingue que fere com perversidade juvenil também exalta a força da pureza, do mais forte que se impõe naturalmente, do que explode com os hormônios. O filho da protagonista mostra que a história vem ciclos. Ele é o espelho e o contraponto da mãe. Reprisa sua sensualidade inata e impulsividade crônica. Faz porque tem que fazer. Não respeita represas. Crialese abusa. Sua câmera explora aromas e reflexos. Sufoca o espectador a ponto da identificação tornar-se obrigatória. E há o mar. O mar como metáfora para a perda de horizontes. É para lá que a personagem de Golino tenta ir de carona; é no mar que ela se despe de roupas e de timidez; e é lá que se perde e renasce santa.

RESPIRO
Respiro, Itália/França, 2002.
Direção e Roteiro: Emanuele Crialese.
Elenco: Valeria Golino, Vincenzo Amato, Francesco Casisa, Veronica D'Agostino, Filippo Pucillo, Muzzi Loffredo, Elio Germano, Avy Marciano.
Fotografia: Fabio Zamarion. Montagem: Didier Ranz. Direção de Arte: Beatrice Scarpato. Música: John Surman. Figurinos: Eva Coen. Produção: Domenico Procacci. Site Oficial: http://www.respiro-lefilm.com.

nas picapes: Non, Je Ne Regrette Rien, Edith Piaf.

19 de jun. de 2004

ADANGGAMAN

NATIONAL GEOGRAPHIC EM NOVENTA MINUTOS

Filme africano interessa mais como uma pequena aula de história



No início, uma história de amor proibido. Filho do chefe de uma aldeia africana no final do século XVI se apaixona por uma escrava e desperta reações contrárias na família. Os minutos iniciais não são mais que vinte e, assim como a locação das primeiras cenas, a história de amor não resiste ao ataque de cruéis guerreiras amazonas (sim, elas existiram e eram bem violentas) e o filme se torna um didático registro sobre como funcionava a participação dos reis de tribos africanas no tráfico de escravos negros para fora do continente-mãe. Sob esse aspecto, o filme parece um daqueles vídeos da National Geographic em versão história da escravatura, o que não é de todo ruim. A trama, costurada a partir das informações repassadas através dos séculos sobre os personagens (nem todos devem ser reais), é ingenuamente dirigida e interpretada. Mas o amadorismo de Adanggaman, nome do rei negro, que é o maior vilão do filme, é até charmoso. Sua tentativa de denúncia e registro histórico é um válido exemplo de como o cinema pode servir para resgatar a memória coletiva.

ADANGGAMAN
Adanggaman, França/Suíça/Costa do Marfim/Burkina Fasso/Itália, 2000.
Direção: Roger Gnoan M'Bala.
Roteiro: Jean-Marie Adiaffi, Bertin Akaffou e Roger Gnoan M'Bala.
Elenco: Rasmane Ouedraogo, Albertine N'Guessan, Ziable Honoré Goore Bi, Bintou Bakayoko, Nicole Suzis Menyeng, Mireille Andrée Boti, Tie Dijian Patrick,Lou Nadège Blagone, Anastasie Tode Bohi, Didier Grandidier, Mylène-Perside Boti Kouame.
Fotografia: Mohammed Soudani. Montagem: Monica Goux. Direção de Arte: Jean-Baptiste Lerro. Música: Lokua Kanza. Figurinos: Aissatou Traore. Produção: Tiziana Soudani.

nas picapes: Amapola, Ennio Morricone

18 de jun. de 2004

ARGENTINA 2

DOIS OLHARES PARA O MESMO PAÍS

O cinema argentino atinge o máximo de seu vigor narrativo com duas obras distintas e distantes



É impressionante como o cinema argentino nada contra a corrente que atinge e devassa o país nos últimos anos. Os nossos vizinhos conseguem extrair bons filmes de romances policiais, histórias de família e crônicas sociais. O Brasil, com uma crise bem mais domada, não consegue ter a unidade de qualidade que os filmes argentinos têm. A diversificada produção cinematográfica do país invade em doses cada vez maiores as salas brasileiras. Nos últimos anos, longas como Nove Rainhas (Fabián Bielinsky, 99), Plata Quemada (Marcelo Piñeyro, 00) e O Filho da Noiva (Juan José Campanella, 01) levaram muita gente pros cinema, além do bom desempenho junto aos críticos. O cinema da terra de Evita consegue ser popular sem abraçar a vulgaridade e denso, passando longe da pretensão intelectual. Os dois exemplos mais recentes, ainda em cartaz pelo Brasil, são Histórias Mínimas, de Carlos Sorin, e O Pântano, da estreante Lucrecia Martel.

O primeiro segue a linha do "filme pequeno". É um delicado conto sobre três personagens de um vilarejo da Patagônia, que enfrentam por motivos diferentes uma viagem para a mesma cidade. O diretor Carlos Sorin, que trabalhou com atores não-profissionais (com impressionante resultado), aposta na simplicidade e no poder de encantamento do roteiro, que foge de estripulias narrativas tão comuns em filmes com histórias paralelas. O título dá conta do quão particulares são os contos (um velhinho procura o cão fugitivo, uma mulher vai receber o prêmio de um programa de TV e um homem leva um bolo de aniversário para o filho de sua pretendente). Pequenos recortes das vidas de gente simples, com motivações reveladas aos poucos, objetivos minúsculos. Um filme que vence pelo cuidado que o diretor tem na composição dos personagens, nas imagens trabalhadas, no espírito lúdico.



O Pântano, de Lucrecia Martel, segue uma linha oposta. Propõe-se a uma crônica familiar e social que narra os bastidores de duas famílias em torno de uma piscina suja, uma possível metáfora da atual situação do país. Mas, ao contrário de Sorin, a diretora estreante não busca o caminho da poesia. A simplicidade - ou ainda, a quase rispidez - do roteiro parece querer sufocar o espectador com um não-trabalho de ambientação que resume o filme ao texto e ao elenco. Um grande texto e um elenco totalmente inspirado por ele. O grau de estilização visual seja na fotografia, seja na direção de arte é nenhum. O que fica mais evidente ao descobrir que o responsável pela câmera deste filme é o mesmo que fez Histórias Mínimas.

A família dona da casa da tal piscina é a própria aberração. Um pai bêbado, uma mãe reclusa, um filho de rosto desfigurado, uma filha desnorteada. O espetáculo de caos e desordem que se desenha foge do padrão estereotipado que poderia resultar desse conjunto de personagens arquetípicos criados pela diretora. Em contraposição, a família amiga, teoricamente melhor estruturada, se mostra tão suscetível à tragédia quanto a primeira. A cineasta sublima a ação em favor do retrato, do recorte, de mostrar. O olhar de Lucrecia Martel para seu próprio país é rico e sem filtros, coisa rara no cinema de hoje.

HISTÓRIAS MÍNIMAS
Historias Mínimas, Argentina/Espanha, 2002.
Direção: Carlos Sorin.
Roteiro: Pablo Solarz.
Elenco: Javier Lombardo, Antonio Benedicti, Javiera Bravo, Francis Sandoval, Carlos Montero, Aníbal Maldonado, María Rosa Cianferoni, Mariela Díaz, María del Carmen Jiménez, Mario Splanguño, Julia Solomonoff, Armando Grimaldi, César García, Laura Vagnoni, Rosa Valsecchi, Silvia Fontelles, Rosario Vera, Enrique Otranto.
Fotografia: Hugo Colace. Montagem: Mohamed Rajid. Direção de Arte: Margarita Jusid. Música: Nicolas Sorin. Produção: Leticia Cristi. Site Oficial: http://www.ocean-films.com/historiasminimas.

O PÂNTANO
La Ciénaga, Argentina/França/Espanha, 2001.
Direção e Roteiro: Lucrecia Martel.
Elenco: Mercedes Morán, Graciela Borges, Martín Adjemián, Leonora Balcarce, Silvia Baylé, Sofia Bertolotto, Juan Cruz Bordeu, Noelia Bravo Herrera, Maria Micol Ellero, Andrea López, Sebastián Montagna, Daniel Valenzuela, Franco Veneranda, Fabio Villafane, Diego Baenas.
Fotografia: Hugo Colace. Montagem: Santiago Ricci. Direção de Arte: Graciela Oderigo. Música: Van Dyke Parks. Produção: Lita Stantic. Site Oficial: http://www.lacienaga.net.

nas picapes: Letter to Memphis, Pixies.

17 de jun. de 2004

DELICADA RELAÇÃO

AMOR NO CAMPO DE BATALHA

Filme israelense se utiliza bem dos clichês para contar uma história de amor gay



As imagens incomodam. Não porque são dois homens se beijando, mas por um detalhe de tradução de linguagem: o filme foi feito para TV e a qualidade técnica cai bastante quando ele é visto numa sala de cinema. Apesar disso, o diretor Eytan Fox, que há algum tempo se aventura pelo tema, domina bem a câmera e consegue produzir cenas bonitas e não tão óbvias. Delicada Relação, título oportunista e claramente inspirado em Delicada Atração (Hattie McDonald, 96), um dos melhores filmes gays da década passada, conta uma história de amor entre dois oficiais do exército israelense. O capitão Yossi, o líder de um grupo de militares num dos pontos de tensão do país, e o soldado Jagger, que ganhou este apelido por ter pinta de rock star, são namorados e, entre uma missão e outra, trocam beijos e carícias.

Pois bem, Fox tinha na mão pelo menos dois pontos polêmicos: o confronto violento Israel-Palestina e o homossexualismo na caserna. Poderia ter feito um filme engajado, tanto no contexto político quanto na militância gay. Mas preferiu o caminho do meio. A guerra e a relação proibida são apenas cenário para o romance entre os militares. Ao evitar o campo minado, o cineasta lava as mãos e se afasta da polêmica. Opção que, num primeiro momento, parece cômoda, mas que, analisada por outro prisma, é bem interessante: o diretor apresenta um relacionamento amoroso, conturbado como qualquer outro, e acompanha seu desenrolar. O conflito acontece na esfera pessoal, particular. O inimigo do amor entre Yossi e Jagger não são os palestinos ou a intolerância, mas suas próprias limitações. Fox se apropria de clichês antigos, mas, como os trabalha bem, raramente é óbvio. Não parece pertinente cobrar qualquer posicionamento mais enfático do cineasta: Yossi & Jagger conta apenas mais uma história de amor. E faz isso bem.

DELICADA RELAÇÃO
Yossi & Jagger, Israel, 2002.
Direção: Eytan Fox.
Roteiro: Avner Bernheimer.
Elenco: Ohad Knoller, Yehuda Levi, Assi Cohen, Aya Steinovitz, Hani Furstenberg, Sharon Raginiano, Yuval Semo, Yaniv Moyal, Hanan Savyon, Erez Kahana, Yael Perl Becker, Shmulik Bernheimer.
Fotografia: Yaron Scharf. Montagem: Yosef Grunfeld. Direção de Arte: Amir Pick. Música: Ivri Lider. Figurinos: Natan Elkanovich. Produção: Amir Harel e Gal Uchovsky. Site Oficial: http://www.yossiandjagger.com.

nas picapes: You're The Sunshine Of My Life, Stevie Wonder.

16 de jun. de 2004

MOÇA COM BRINCO DE PÉROLA

A FEITICEIRA ESCARLATE

Talento da protagonista resgata Moça com Brinco de Pérola do calabouço estético



A sofisticação visual de Moça com Brinco de Pérola é inegável. Além da direção de arte e dos figurinos bem cuidados, a câmera chama atenção pelos quadros que produz e pelas cores que impõe ao cenário. O que mais se fala sobre o filme é como a fotografia se apropria da luz das telas de Veermer, o principal coadjuvante do longa de estréia de Peter Webber. A informação rodou tanto que é impossível não ler um texto que não divague sobre a condição de homenagem que o cineasta empregou ao filme. Mas nem tudo que reluz... você deve conhecer o ditado. Se a composição imagética impressiona, Moça com Brinco de Pérola guarda poucas surpresas nas suas opções narrativas. Webber conta com fidelidade cronológica, algo muito reverente e recorrente quando se retrata a vida de artistas no cinema, a aproximação gradual entre o pintor e sua empregada, que viria a se tornar musa de sua obra mais conhecida.

Lugares comuns não faltam. O maior talvez seja a condição demoníaca imposta à filha do artista, cujas cenas de maldades sempre se encerram com pequenos olhares macabros. Os vilões, por sinal, estão espalhados pelos cômodos da casa. A mulher e a sogra do pintor são retratadas como mulheres arrogantes e exploradoras, tanto dos empregados quanto do talento de Veermer. Colin Firth dá ao artista aquele toquezinho de gênio excêntrico, que todo mundo já viu em algum lugar. Diante disso, o maior destaque do filme é a interpretação de Scarlett Johansson, uma das melhores atrizes dos últimos tempos. Discreta e sutil, ela fala pouco e conquista pelo olhar tímido e espantado. A baixinha de rosto perfeito compõe sua personagem com a perspicácia de uma veterana, delicada e sedutora. Uma verdadeira inspiração para qualquer artista.

MOÇA COM BRINCO DE PÉROLA
Girl With a Pearl Earring, Grã-Bretanha/Luxemburgo, 2003.
Direção: Peter Webber.
Roteiro: Olivia Hetreed, baseado no livro de Tracy Chevalier.
Elenco: Scarlett Johansson, Colin Firth, Tom Wilkinson, Judy Parfitt, Cillian Murphy, Essie Davis, Joanna Scanlan, Alakina Mann, Chris McHallem, Gabrielle Reidy, Rollo Weeks, Anna Popplewell, Anaïs Nepper, Melanie Meyfroid, Nathan Nepper.
Fotografia: Eduardo Serra. Montagem: Kate Evans. Direção de Arte: Ben van Os. Música: Alexandre Desplat. Figurinos: Dien van Straalen. Produção: Andy Paterson e Anand Tucker. Site Oficial: http://www.girlwithapearlearringmovie.com.

nas picapes: I?m Going Bananas, Madonna.

15 de jun. de 2004

DE CORPO E ALMA

PRODUTO DO MEIO

Altman invade o mundo da dança preocupado em explorar o processo e não seus personagens



Robert Altman adora muita gente reunida. Seus filmes são festas concorridas, com personagens que protagonizam cenas e não a obra inteira. Característica que contribui para roteiros ricos e avessos a vícios de estrelismo. O cineasta é um autor, sem dúvida. E como todos os autores, sua carreira tem momentos bons e ruins. Muita gente se dedicou a escrever sobre como De Corpo e Alma é um filme que se encaixa na última categoria. Para isso, argumentos não faltaram: Neve Campbell protagonizando, produzindo e escrevendo o texto, a partir de suas experiências como dançarina foi o maior deles. Vejam bem, eu não sou fã de Neve Campbell, mas ela sempre me pareceu uma mocinha bastante simpática e bonita. Adoro os dois primeiros Pânicos e confesso que os problemas adolescentes de Party of Five eram bem legais de acompanhar. Mas o caso não é este: Neve Campbell é, mas não é, protagonista deste filme. Porque Altman não a trata assim.

Ry é uma integrante da companhia cujos bastidores o filme acompanha. Seu espaço no longa é quase o mesmo dedicado aos outros personagens. E isso, retorno, é uma característica do diretor, mesmo em filme encomendados com esse. Os efeitos são controversos. O vício de Altman de invasor de universos (o do country, o da moda, o do cinema, o do exército) encontra aqui a dança. Mas, hábil em se dedicar ao conjunto, o cineasta peca porque desta vez não consegue desenvolver bem os personagens. Muito mais refém de clichês, Fama (Alan Parker, 80) se dá bem melhor neste quesito, se é que é possível comparar os filmes. No filme de Altman, os atores são apenas elementos da companhia do título original. O tratamento, se não é raso, pode ser chamado de descuidado. A falta de elaboração nesse aspecto é substituída pela dedicação ao processo. O cineasta quer mostrar como tudo aquilo é feito. E o faz com razoável sucesso. Mas esta opção, em troca de se aprofundar no tratamento aos indivíduos, deixa o filme com um gosto mecânico. Isso incomoda. Não mais que as coreografias apresentadas no longa que, aos olhos do não-especialista que vos escreve, pareceram bem feinhas.

DE CORPO E ALMA
The Company, EUA/Alemanha, 2003.
Direção: Robert Altman.
Roteiro: Barbara Turner, baseada na história dela e de Neve Campbell.
Elenco: Neve Campbell, Malcolm McDowell, James Franco, Barbara E. Robertson, William Dick, Susie Cusack, Marilyn Dodds Frank, John Lordan, Mariann Mayberry, Rick Peeples, Yasen Peyankov, Deborah Dawn, John Gluckman, David Gombert, Suzanne L. Prisco, Domingo Rubio, Emily Patterson, Maia Wilkins, Sam Franke, Trinity Hamilton, Julianne Kepley, Valerie Robin, Deanne Brown, Michael Smith, Matthew Roy Prescott, Lar Lubovitch, Robert Desrosiers.
Fotografia: Andrew Dunn. Montagem: Geraldine Peroni. Direção de Arte: Gary Baugh. Música: Van Dyke Parks. Figurinos: Susan Kaufmann. Produção: Robert Altman, Joshua Astrachan, Neve Campbell, Pamela Koffler, David Levy, David Ley, Christine Vachon. Site Oficial: http://www.sonyclassics.com/thecompany.

nas picapes: Femme Fatale, REM.

14 de jun. de 2004

O RETORNO

CRIME E CASTIGO

Primeiro filme de cineasta russo disserta sobre o significado de ser pai



Começar de novo. É o que tentam os três personagens que protagonizam o filme de estréia de Andrey Zvyagintsev. O russo de nome difícil abriu uma das feridas mais profundas da velha União Soviética, a das famílias dilaceradas. Doze anos depois de desaparecer por completo, um homem volta para casa e reencontra a mulher e os dois filhos já crescidos. Fosse rodada à moda do cinema feito à oeste de Greenwich, essa história facilmente sucumbiria a pelo menos três grandes vícios narrativos ocidentais: escolher vilões, desvendar enigmas e provocar catarses dramáticas. Mas para o cineasta russo, o que merece atenção é o impacto da ausência para cada um dos envolvidos e não enumerar em ordem cronológica os fatos que estabeleceram a situação. A viagem para uma pescaria vai confrontar pai e filhos com o que restou da relação entre os três e em que bases cada um consegue estruturar o novo contato.

O diretor insinua revelar o mistério do desaparecimento, que ainda guarda reflexos, por quase todo o longa-metragem, mas em troca do segredo oferece sua contribuição para um estudo sobre o perdão na esfera familiar. A base narrativa do filme se apóia num dos trabalhos de câmera mais elaborados do ano, onde cada imagem é tratada como uma pintura. A sofisticação visual é obviamente calculada, mas o espetáculo é completo para os olhos e, somado à música, conduz com precisão poética a história que o cineasta pretende contar. O Retorno, no entanto, poderia ser um desperdício de talentos pontuais caso Zvyagintsev não tivesse encontrado um protagonista digno do papel central. Ivan Dobronravov é capaz de equilibrar a fúria pré-adolescente com um olhar tão denso e sincero que faz veteranos ficarem rubros. O fim da projeção pode não abrir caixas e apontar culpados, mas permite divagações sobre o abismo indefinível entre dois indivíduos.

O RETORNO
Vozvrashcheniye, Rússia, 2003.
Direção: Andrey Zvyagintsev.
Roteiro: Vladimir Moiseyenko e Aleksandr Novototsky.
Elenco: Vladimir Garin, Ivan Dobronravov, Konstantin Lavronenko, Natalya Vdovina e Galina Petrova.
Fotografia: Mikhail Krichman. Montagem: Vladimir Mogilevsky. Direção de Arte: Zhanna Pakhomova. Música: Andrei Dergachyov. Figurinos: Anna Barthuly. Produção: Dmitri Lesnevsky. Site Oficial: http://www.cinema.com.hk/return.

nas picapes: Sit Down, James.

13 de jun. de 2004

COMEBACK

COMEBACK



O comandante anunciou. "Senhoras e senhores, estamos chegando a Salvador. A temperatura está em 28º". E era verdade, apesar da enxurrada que vinha do céu. O calor da segunda-feira seguia os cinco dias de frio em São Paulo. Uma temperatura até vinte pontos menor. Viagem às pressas, folga repentina. Dias de conhecer novos amigos e rever os antigos que fazem muita falta. Viagem cheia ainda de encontros (meu amigo Teco Apple, finalmente, depois de um ano e meio de emails e mensagens pelo MSN) e desencontros (Vaquinha Eugênia e Marcelo V., ainda não foi desta vez, mas será). I believe... sometimes I touch. Foram muitas visitas a sebos e alguns livros e discos na bagagem. No dia dos namorados, assim como nos outros dias, minha companhia foi o cinema. No decorrer do período, publico os textos aqui:

1 O Retorno
2 De Corpo e Alma
3 Delicada Relação
4 Moça com Brinco de Pérola
5 O Pântano
6 Histórias Mínimas
7 Respiro
8 Adanggaman
9 Filme de Amor

De quebra, vi pela primeira vez em DVD, Donnie Darko, de Richard Kelly. Muchas gracias ao meu amigo Guilherme por, mais uma vez, abrir para mim as portas de sua casa. Uma viagem feliz.

9 de jun. de 2004

VIAGEM

BLOG TEMPORARIAMENTE DESATIVADO POR MOTIVO DE VIAGEM

Ou: "se der, eu posto alguma coisa antes de segunda-feira"



Até lá.

8 de jun. de 2004

MINHA VIDA SEM MIM

A REIVENÇÃO DO CLICHÊ

Plot digno de melodrama dos anos 50 ganha roupagem lírica e atual



Mais digno que criar é transformar. Mudar o que já existe e inventar por cima, acrescentar, aperfeiçoar, remodelar. A palavra clichê não tem um tom necessariamente pejorativo. Minha Vida Sem Mim é um filme sobre clichês. Conta a história de uma mulher que descobre que vai morrer e decide preparar um belo destino para sua família. Nos dois meses que lhe restam, arranja tudo que precisa para que seu marido, suas filhas, sua mãe e seu pai fiquem bem depois de sua morte. Nesse meio tempo, ainda encontra motivos para se reiventar para o amor.

Há cinquenta anos, o filme teria Lana Turner como protagonista e Douglas Sirk como diretor. Um melodrama clássico, como os homenageados no irônico (sim) Longe do Paraíso (02), de Todd Haynes. Hoje, para conseguir um lugar sobre os holofotes, o gênero precisou ser transformado. A diretora Isabel Coixet se aproxima das texturas de Pedro Almódovar, que assina a produção executiva. Texturas narrativas. Texturas na concepção dos personagens, criaturas complexas, mas de fácil identificação.

Coixet se alimenta dos esteréotipos até começar a negá-los e subvertê-los. A mãe-esposa vivida por Sarah Polley é uma pós-adolescente frágil e ao mesmo tempo impetuosa. Conheceu o marido no último show do Nirvana. O marido é meio desleixado mas é gente boa. Está feliz porque conseguiu um emprego. Mark Ruffalo, ótimo, aparece e com ele surge um triângulo amoroso. É o poeta ausente, um homem do amor. Deborah Harry, do Blondie, é sua mãe, uma daquelas velhas amarguradas saudosas de passados imperfeitos, que vive às rusgas com a filha. Mas tudo muda. E o espectador se depara com ela numa das melhores cenas do filme, uma cena que explica e anula todo o resto: Mildred Pierce (Joan Crawford, em Almas em Suplício, 45), a história da mãe que quer conquistar o amor da filha, está passando na TV. Nenhum clichê precisa ser óbvio.

MINHA VIDA SEM MIM
My Life Without Me, Canadá/Espanha, 2003.
Direção e Roteiro: Isabel Coixet, baseada no conto Pretending the Bed is a Raft, de Nancy Kincaid.
Elenco: Sarah Polley, Amanda Plummer, Scott Speedman, Leonor Watling, Deborah Harry, Maria de Medeiros, Mark Ruffalo, Julian Richings, Jessica Amlee, Kenya Jo Kennedy, Alfred Molina.
Fotografia: Jean-Claude Larrieu. Montagem: Lisa Robison. Direção de Arte: Carol Lavallee. Música: Alfonso Vilallonga. Canção: "Senza Fine", de Gino Paoli. Figurinos: Katia Stano. Produção: Esther García e Gordon McLennan. Site Oficial: http://www.sonyclassics.com/mylifewithoutme/

nas picapes: Poema de Maria Rosa, Wado.

7 de jun. de 2004

HARRY POTTER E O PRISIONEIRO DE AZKABAN

BRUXO EM FASE DE CRESCIMENTO

Novo diretor finalmente transforma Harry Potter num adolescente



Há um certo preconceito intelectual com o universo de Harry Potter, a criação milionária da inglesa J. K. Rowling. A pequena massa culta estranha um personagem popular surgido em meio a uma realidade fantástica, que gera livros em série e mais games, filmes, camisetas, bonés e bonequinhos. O bruxinho criado por Rowling é visto mais como produto com fins lucrativos que como obra. Potter, numa visão simplificada da questão, é raso, fácil e com um forte poder de abstração do que realmente conta. O primeiro problema talvez seja estabelecer o que realmente conta. O segundo, e talvez mais grave, é desconhecer a obra em si por preconceito ? e falar mal dela mesmo assim.

Harry Potter, no entanto, não é apenas o maior fenômeno da literatura infantil dos últimos vinte ou trinta anos. É a maior criação literária destinada a este perfil de público leitor neste mesmo período de tempo. Uma elaborada criação literária, é verdade, que incorpora mitologias, lendas e fábulas para contar uma história sobre um menino que começa a virar homem. Bobinho, não é? Ingênuo. Mas Potter é exatamente isso. Um menino crescendo. Um garoto que descobre a cada dia, com cada situação, que o tempo passa e provoca mudanças nele e em seus amigos. Transformações no corpo e na mente. E realmente não há nada de fantástico nisso. Qualquer um que está lendo este texto enfrentou essas transformações, mudou com estas mudanças.

O melhor de Harry Potter é como sua autora consegue criar um ambiente de fascínio e identificação sugerido pela palavra. Rowling é uma escritora extremamente popular e muito talentosa. Um talento talvez bem limitado de acordo com visões mais exigentes, mas é inegável sua capacidade de envolver o leitor através de um universo que estava em desuso, num lento processo de decadência e de esquecimento. Bruxos, criaturas míticas, seres malvados deixam mais carinhosa a relação de quem lê com o que está no papel. Harry Potter exalta o lúdico e a criança. Talvez seja por isso que as duas primeiras investidas do bruxo no cinema sejam dois filmes para a criança. Dois filmes bons, mas dois filmes feitos para o público infantil.

O diretor Chris Columbus assumiu o compromisso de dirigir uma aventura para meninos e meninas. E fez isso duas vezes. A Pedra Filosofal (01) e A Câmara Secreta (02) são belos trabalhos para um público específico. A terceira incursão do personagem no cinema reverte tudo isso. Harry Potter e o Prisioneiro de Azkaban evolui significativamente em relação aos filmes anteriores: é uma história sobre meninos crescendo. O melhor é que o longa não se estrutura sobre as obviedades da concepção de responsabilidade ou o amadurecimento em troca da infância. O filme é sobre olhar para o mundo de uma maneira nova.

Harry, Hermione e Ron dominam filme. Tudo gira em torno deles, o que até prejudica um pouco a participação dos adultos veteranos do elenco. Maggie Smith, por exemplo, tem uma pequena cena. Mas em compensação a opção do novo diretor Alfonso Cuarón (do belo A Princesinha, 95) por priorizar o trio permite as mudanças de tom do filme. O Prisioneiro de Azkaban é o Potter mais sombrio dos que já chegaram às telas. Como o humor de um adolescente. O mundo não é mais tão colorido e o esplendor visual pode vir da figura macabra de um dementador, a nova criatura mágica criada por Rowling. A magia, por sinal, é a grande novidade deste terceiro capítulo da série. No filme, os garotos finalmente se mostram bruxos. Os feitiços são mais visíveis e o universo místico está espalhado por todas as cenas, sobretudo as que revelam mais um pouco do passado do protagonista e acenam para seu destino.

O diretor recém-chegado foi feliz na escolha dos novos integrantes do elenco: Gary Oldman e David Thewlis, ambos perfeitos, e Timothy Spall, em ritmo acelerado. Emma Thompson é que não escapa do exagero na caracterização da nova professora. Michael Gambom é um grande ator, mas seu Dumbledore dá bastante saudade de Richard Harris. No entanto, o grande destaque do novo elenco é o hipogrifo criado pelas maravilhas da tecnologia que permitiram uma cena de absoluto deslumbre visual.

A chegada de Cuarón e de suas intenções de investigar os adolescentes em formação ganhou uma ajuda inusitada: o crescimento dos três pequenos protagonistas. É o melhor desempenho de Daniel Radcliffe na série. Nos dois filmes anteriores, Harry estava à sombra de personagens mais ricos em nuanças como Hermione e Ron, os contrapontos cômicos para o bom menino. Agora, com mais espaço, Radcliffe está seguro, com presença mais marcada. Melhor ator mesmo (embora Emma Watson ainda tenha a grande performance do filme - no primeiro, era até covardia compará-los). É curioso perceber que ao deixar Harry, Hermione e Ron no comando, Cuarón foi responsável por uma quase-dicotomia: O Prisioneiro de Azkaban é o mais adolescente dos três filmes. E também é o longa mais adulto. Mistérios de quem está crescendo.

HARRY POTTER E O PRISIONEIRO DE AZKABAN
Harry Potter and the Prisoner of Azkaban, Estados Unidos, 2004.
Direção: Alfonso Cuarón.
Roteiro: Steve Kloves, com base no livro de J.K. Rowling.
Elenco: Daniel Radcliffe, Emma Watson, Rupert Grint, Alan Rickman, Gary Oldman, David Thewlis, Emma Thompson, Timothy Spall, Robbie Coltrane, Michael Gambon, Maggie Smith, Fiona Shaw, Jimmy Gardner, Pan Ferris, Tom Felton, Oliver Phelps, James Phelps, Matthew Lewis, Richard Griffiths, Harry Melling, Julie Christie, Chris Ranking, Julie Walters.
Fotografia: Michael Seresin. Montagem: Steven Weisberg. Direção de Arte: Stuart Craig. Música: John Williams. Figurinos: Jany Temime. Produção: Chris Columbus, David Heyman e Mark Radcliffe.

nas picapes: Come Upstairs, Snooze.

6 de jun. de 2004

O LIXO E A FÚRIA

A VIDA CHEIA DE SOM E FÚRIA

Documentário abre o guarda-roupa da maior banda punk do mundo



Julien Temple estudava cinema. Em 1976, decidiu largar o curso para fazer cinema. Durante dois anos, acompanhou os Sex Pistols, a banda que inventou o movimento punk, guardando em película apresentações, bastidores e entrevistas. Um material riquíssimo que chegou às telas em parte num filme comandado pelo empresário e possível carrasco da banda, Malcolm McLaren, em 1980. Vinte anos depois, Temple reuniu o que havia filmado, remontou tudo que tinha em mãos e gerou O Lixo e a Fúria, um dos mais importantes registros de uma banda de rock durante sua existência.

O diretor se omite de julgamentos, deixa na boca dos cinco integrantes da banda a condução da história, de suas histórias. O Lixo e a Fúria vai do surgimento enlouquecido de uma nova filosofia, de uma nova atitude perante o mundo até a pulverização desta filosofia justamente pela anarquia que comandava sua essência. O filme tem registros raros e históricos, como o programa de TV em que os Pistols mandaram o apresentador se foder (e onde poder ser vista a então groupie da banda, Siouxsie Sioux, que ainda viria a ser a líder dos The Banshees).

O documentário mostra como os integrantes da banda vivia numa contradição: não estavam nem aí para o mundo, para o dinheiro, para a sociedade, e se alimentavam da fama de que não estavam nem aí para o mundo, para o dinheiro, para a sociedade. A abstração de Sid Vicious, Johnny Rotten e seus camaradas ajudou a deixar livre o caminho para Malcolm McLaren se instalar e dominar os rumos dos Sex Pistols. O mais impressionante é pensar como o caos absoluto consegue produzir uma das maiores músicas do mundo: ?Anarchy in UK?.

O LIXO E A FÚRIA
The Filth and the Fury, Grã-Bretanha/EUA, 2000.
Direção, Roteiro e Fotografia: Julien Temple.
Montagem: Niven Howie. Música: Sex Pistols. Produção: Anita Camarata e Amanda Temple.

nas picapes: Anarchy in the UK, Sex Pistols.

3 de jun. de 2004

VIVA VOZ

TELEFONE SEM FIO

A estréia de Paulo Morelli divaga pela comunicação, mas nem sabe balbuciar



Viva Voz é um filme de plástico; não tem gosto de nada. Um produto tipicamente paulista, feito para alcançar um padrão de comédia moderna, atual, internacional - um filme que poderia ter sido feito em qualquer país do mundo. Com esse princípio globalizado, o que mais faz falta à comédia de estréia de Paulo Morelli é justamente uma particularidade - qualquer uma. A produção, bem cuidada, mostra a assinatura da 02. O elenco traz globais do segundo escalão, alguns bons atores (como Dan Stulbach, Graziella Moretto e Betty Goffman). Mas o roteiro não ajuda, não anima. Morelli propõe uma trama simpática que passeia pelo fenomenal clichê de expor os vícios da sociedade brasileira (ou não) atual: corrupção, pequenos golpes, traição, falta de escrúpulos. Sem sucesso. É raso em todas suas tentativas. O pior é que o filme não funciona nem quando não há pretensão. Triste destino o das comédias sem graça. As artimanhas narrativas - e de texto - do filme são fáceis e óbvias, apesar de apostarem numa aura cool e descolada. A montagem moderninha e o humor sarcasticozinho tentam dar o tom, mas não dá certo: o resultado é pasteurizado, como a fotografia desbotada do longa. Um pastiche de todas as comédias urbanas atuais, sejam norte-americanas ou européias.

VIVA VOZ
Viva Voz, Brasil, 2004.
Direção, Produção e Montagem: Paulo Morelli.
Roteiro: Marcio Alemão, baseado em argumento de Paulo Morelli.
Elenco: Dan Stulbach, Viviane Pasmanter, Graziella Moretto, Luciano Chrolli, Kiko Mascarenhas, Fábio Herford, Otávio Martins, Betty Goffman, Genésio de Barros, Ernani Moraes, Paulo Gorgulho, Supla.
Fotografia: Luís Branquinho. Direção de Arte: Cláudia Briza. Música: Paul Mounsey. Figurinos: David Parizotti. Site Oficial: http://www2.uol.com.br/bvi/vivavoz

nas picapes: Waterfall, The Stone Roses.

1 de jun. de 2004

XUXU

DA FALTA DE GRAÇA

Comédia francesa é inconsistente, incongruente e quase nunca faz rir



Existe um certa corrente no cinema francês que quer fazer filmes extremamente populares, flertando com um humor mais fácil, quase vulgar. Desta estirpe de filmes fazem parte Uma Cama para Três (Josiane Balasko, 95) e Loucas Noites de Batom (Gabriel Aghion, 96). Ambos sucessos de bilheteria na França; ambos ruins. Xuxu utiliza a mesma tática para atingir o público, mas simultaneamente tenta criar uma trama original e peculiar que é tão original e peculiar que não se explica direito. A coesão entre os fatos narrados sobre a chegada de Chouchou a Paris praticamente não existe. Tudo acontece sem muita explicação. Parece história mal contada. E é. O tratamento dado ao universo gay é simpático, fofinho, mas cai em todos os estereótipos possíveis. O filme quer ser muito agradável, mas padece pela falta de conteúdo. Risos, só com o canto da boca. E isso é muito pouco para uma comédia. Mesmo para uma comédia francesa.

XUXU
Chouchou, França, 2003.
Direção: Merzak Allouache.
Roteiro: Merzak Allouache e Gad Elmaleh.
Elenco: Gad Elmaleh, Alain Chabat, Claude Brasseur, Roschdy Zem, Catherine Frot, Julien Courbey, Arié Elmaleh, Yacine Mesbah, Micheline Presle, Jacques Sereys, Michaël Youn, Stéphane Boucher, Olivia Dessolin.
Fotografia: Laurent Machuel. Montagem: Sylvie Gadmer. Direção de Arte: Sylvie Deldon. Música: Germinal Tenas e Gilles Tinayre.. Figurinos: Fabienne Katany e Ricardo Martinez-Paz. Produção: Christian Fechner.

nas picapes: Empty Space, Teenage Fanclub.


 
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