[f i l m e s d o c h i c o]

29 de dez. de 2003

O SHOW NÃO PODE PARAR

Dos méritos, o maior. O Show Não Pode Parar é todo narrado em primeira pessoa. Tudo que está na tela é a opinião de Robert Evans, personagem principal do filme, um homem que não esconde seus ressentimentos, seu ar superior e sua visão, muitas vezes sarcástica e preconceituosa de tudo o que aconteceu na sua vida. O Show Não Pode Parar é, então, um filme honesto, o que, para um documentário, é bem mais do que se possa esperar. De ator medíocre a chefe de um dos principais estúdios do mundo do cinema, a Paramount, a vida de Robert Evans foi bem mais interessante do que a dos homens comuns que cruzaram seu caminho. Vida onde gente como Ali McGraw, Dustin Hoffman, Jack Nicholson e Francis Ford Coppola foram coadjuvantes de luxo.

Evans, o produtor de O Bebê de Rosemary (68), Love Story (70), dos dois primeiros capítulos de O Poderoso Chefão (72 e 74) e de Chinatown (74), escreveu seu nome na história para depois ser sugado por ela através de intrigas, drogas e histórias bem ou mal contadas; cenário comum num universo egocêntrico como o do cinema. Seria de se esperar um filme para celebrar o personagem e lamentar seus infortúnios. Isso existe, mas não predomina no longa. O tom confessional não pende para o onanismo. E para contar essa história, os diretores usaram recursos visuais extremamente bem acabados e uma fartíssima quantidade de arquivos raros. Delícia para qualquer um que goste de cinema.

O Show Não Pode Parar
The Kid Stays In The Picture, EUA, 2002
Direção: Nanette Burstein e Brett Morgen.
Elenco: Robert Evans, Francis Ford Coppola, Mia Farrow, Ernest Hemingway, Dustin Hoffman, Henry Kissinger, Ali MacGraw, Laurence Olivier, Roman Polanski.
Roteiro: Brett Morgen, baseado no livro de Robert Evans. Produção: Brett Morgen, Nanette Burstein e Graydon Carter. Música: Jeff Danna. Fotografia: John Bailey. Edição: Jun Diaz. Direção de Arte: Mark Harper.

25 de dez. de 2003

FUSO HORÁRIO DO AMOR

No começo de Fuso Horário do Amor, a protagonista diz que todo mundo deveria ter o direito de viver um dia como num filme norte-americano. Se a idéia era contar uma história simples e fazer uma brincadeira com as comédias românticas feitas nos Estados Unidos, o tiro saiu você sabe bem por onde. O filme narra aquele encontro casual entre um homem e uma mulher que faz nascer amor entre a dupla. Mas, por mais que Juliette Binoche seja uma atriz maravilhosa, capaz de transformar um pequeno diálogo num grande discurso e uma expressão simples num milhão de significados, o filme apenas rascunha ser uma boa história. Daniele Thompson mastiga e vomita os mesmos clichês com os quais quis brincar. Lá pelo meio do filme, o roteiro até ensaia uma saída simpática para os chavões habituais. Mas os minutos finais do longa caminham para um poço sem fundo onde a ironia é substituída pela falta de criatividade. Se fosse filmado nos Estados Unidos, seria um filme mais óbvio, sem dúvida. Mas é justamente por vir de onde vem que ele decepciona tanto.

Fuso Horário do Amor
Décalage Horaire, França/Grã-Bretanha, 2002
Direção: Danièle Thompson.
Elenco: Juliette Binoche, Jean Reno, Sergi López, Scali Delpeyrat, Karine Belly.
Roteiro: Danièle Thompson e Christopher Thompson. Produção: Alain Sarde. Música: Eric Serra. Fotografia: Patrick Blossier. Edição: Sylvie Landra. Direção de Arte: Michèle Abbé-Vannier. Figurinos: Elisabeth Tavernier.

18 de dez. de 2003

CONTO DE OUTONO

Existe uma grande discussão sobre qual deve ser a prioridade de um cineasta: conquistar seu público, mesmo que ele seja restrito, ou experimentar, inovar, contribuir para o desenvolvimento não apenas técnico da arte. Essa questão se complica ainda mais quando tenta se estabelecer o que é e o que não é ser autoral. Talvez o problema seja o radicalismo de ambos os lados: ou se abre mão de maior inventividade para atingir um número cada vez maior de espectadores ou se assume o cinema como área de experimentação e não existe preocupação em fazer o público entender e, o mais grave, se interessar pelo que está na tela.

Meios-termos são bastante difíceis.

A nouvelle vague, o movimento cinematográfico francês da virada dos anos 50 para os 60, é normalmente associada ao ressurgimento de um cinema inteligente, que cria, que inova na linguagem e na estética. Da nouvelle vague, surgiram dois cineastas opostos. François Truffaut e Jean-Luc Godard. Se Truffaut preferiu adotar as histórias mais simples e um modo mais apaixonado, no que isso tem de bom e de ruim, de filmar, Godard sempre centrou fogo em temas mais complexos e numa busca criativa mais pessoal, que arrebatou legiões e afastou meio mundo. Truffaut e Godard são grandes cineastas. Mas são muito diferentes. Quase opostos. Ícones de um movimento contraditório.

Éric Rohmer também surgiu com a nouvelle vague. Ele, junto com Claude Chabrol e Jacques Rivette, e mais Truffaut e Godard, são os cinco maiores nomes da nova onda. Mas Rohmer tem um cinema bem à parte de seus comparsas. Uma das características mais fortes de sua filmografia é justamente o fato de tentar não fazer cinema. Rohmer aposta num naturalismo quase torturante. Mas, muitas vezes, o feitiço não funciona. A apatia generalizada das interpretações desdramatiza a trama, que fica desacreditada e não cumpre sua função primordial: envolver o espectador. Ah, mas nem todo mundo se preocupa com ele, o espectador...

Afinal, ele é apenas o cara que assiste ao filme.

Em um de seus últimos longas, A Inglesa e o Duque, ele abre o diário de uma dama da época da Revolução Francesa e lê alguns trechos de seu dia-a-dia. E pronto. Não fosse a idéia espetacular de trabalhar com gigantescas telas pintadas como cenários externos, o filme seria pouco mais que um desperdício de tempo. A obra do cineasta tem trabalhos geralmente cultuados. De Minha Vida com Ela (69) a sua série Contos das Quatro Estações, com histórias envolvendo o amor e os relacionamentos associadas a cada uma das épocas do ano. Conto de Outono (98) é um destes títulos. O filme, em que - mais uma vez - os atores não parecem atores, mostra a vida de uma vinicultora que quer encontrar um marido, mas não faz nada para isso. Sua melhor amiga e a namorada de seu filho resolvem fazer o papel de cupido.

A idéia do roteiro é interessante. Mostrar os encontros e desencontros possíveis numa armação amorosa. Discutir a busca (e os caminhos) para se chegar ao amor. Falar sobre a solidão e sobre satisfazer suas próprias curiosidades e carências usando os outros. Mas é justamente o traço mais clássico dos filmes de Rohmer que estraga tudo. Ninguém convence, ninguém emociona, ninguém interessa. Não há amor ou ódio pelos personagens porque não há interpretações, nem ensaios de. Tudo é falso quando deveria parecer real. Nada acontece. Talvez da próxima vez.

Conto de Outono
Conte d'Automne, França, 1998
Direção e Roteiro: Éric Rohmer.
Elenco: Marie Rivière, Béatrice Romand, Alain Libolt, Didier Sandre, Alexia Portal, Stéphane Darmon, Aurélia Alcaïs, Matthieu Davette, Yves Alcaïs, Claire Mathurin.
Produção: Françoise Etchegaray. Música: Claude Marti, Gérard Pansanel, Pierre Peyras e Antonello Salis. Fotografia: Diane Baratier. Edição: Mary Stephen. Direção de Arte: Claire Champion.

14 de dez. de 2003

SOBRE MENINOS E LOBOS

Clint Eastwood é um homem norte-americano. Um herói norte-americano. Um mito norte-americano. O caminho que escolheu seguir no cinema, então, é surpreendente. De cowboy italiano a policial linha dura, sua carreira como ator é formada por tipos fortes, homens cuja virilidade inquestionável raramente deixava espaço para algo além da truculência. Mas o trabalho de ator não guardava todos os espasmos que Eastwood abrigava dentro de si e ele resolveu ser um cineasta. E foi nessa função que o herói revelou sensibilidade raramente vista em alguém com uma trajetória semelhante a sua. Primeiro, recriou um western clássico em O Cavaleiro Solitário (85). Depois, ajoelhou e pediu a benção ao jazz em Bird (88). Voltou ao Oeste e criou um filme à moda antiga no definitivo Os Imperdoáveis (92). E resolveu falar sobre a mulher e o amor que só a mulher pode guardar em As Pontes de Madison (95).

É, homens assim como Clint Eastwood podem vir a ser diretores bem poéticos. É o que muitos atribuem a uma alma feminina. Sensibilidade é comumente associada à figura da mulher. É bem verdade que, muitas vezes, na maioria delas, elas, as mulheres, são bem mais sensíveis que nós, os homens. Mas nem sempre a comparação vale. Pedro Almodóvar, o espanhol, nunca negou a homossexualidade. Seu Fale com Ela (02) é um filme extremamente sensível, mas nunca feminino. Pelo contrário. É um filme de macho. De um amor que só o homem pode guardar. Se Almodóvar pode ser sensível sem necessariamente ser feminino, o que dizer de Clint Eastwood?

Sobre Meninos e Lobos, o último filme dirigido pelo herói norte-americano, é a desconstrução de qualquer resquício da imagem estereotipada do cineasta que ainda vaga por aí. É um filme triste e amargo, como a sensibilidade reservada para o homem deve ser. Pelo menos para os três protagonistas desta história e para o bairro onde eles nasceram. Eastwood se apropria do livro de Dennis Lehane, para contar um pedaço da vida de três homens, que já foram quase amigos e que viveram na infância uma pequena tragédia que mudaria os rumos de suas vidas. Uma coisa leva a outra. Jimmy, Dave e Sean cresceram e tomaram caminhos diferentes. Não se misturam mais, mas ainda cruzam os caminhos, um do outro. Uma nova pequena tragédia junta (e separa) os três.

Clint Eastwood ensaia uma trama de mistério, bem mais palatável para os amantes de Dirty Harry, mas oferece um duelo para o espectador. Duelo entre verdade e mentira, entre justiça e violência e entre amizade e vingança. Escolhe três ícones do cinema dos anos 80 como protagonistas. Sean Penn recupera um truculento Robert De Niro, Tim Robbins exagera nas caras e bocas e Kevin Bacon cerra os dentes e segue a vida. Os três personagens têm modelos estereotipados: o violento, o perturbado e o correto. Mas o roteiro e a direção os desenham com tantas possibilidades que somem as linhas e ficam apenas as cores. E é isso que faz a história andar. Mais valem os homens e seus motivos e suas questões que os fatos e as situações.

A direção de atores é fenomenal: se o roteiro privilegia os personagens, a direção democratiza as interpretações, que só existem uma em função da outra, sem grandes destaques individuais. Um faz o outro fluir. Sean Penn dá o exemplo. Seu Jimmy Markun poderia ser um líder marginal a exemplo dos protagonistas de filmes de Martin Scorsese ou Abel Ferrara, mas ele se insere com tanta facilidade e competência nos contextos criados a cada cena, que nunca domina o filme. Kevin Bacon é uma grande surpresa, contido e firme. E se o casal Tim Robbins e Marcia Gay Harden, casal no filme, abusa dos olhares de desconfiança ou de descontrole, Laura Linney cristaliza sua condição de musa, com uma cena em especial onde revela realeza.

Força bruta e delicadeza. Em Sobre Meninos e Lobos, Clint Eastwood não abandona a violência. Ele esmurra o espectador com força. Um homem sensível.

Sobre Meninos e Lobos
Mystic River, EUA, 2003
Direção: Clint Eastwood.
Elenco: Sean Penn, Kevin Bacon, Tim Robbins, Marcia Gay Harden, Laura Linney, Laurence Fishburne, Kevin Chapman, Tom Guiry, Emmy Rossum, Spencer Treat Clark, Jillian Wheeler, Cameron Bowen, Sean Patrick Doherty, Jason Kelly, Andrew Mackin, Adam Nelson, Eli Wallach.
Roteiro: Brian Helgeland, baseado na novela de Dennis Lehane. Produção: Clint Eastwood, Robert Lorenz e Judie Hoyt. Música: Clint Eastwood. Fotografia: Tom Stern. Edição: Joel Cox. Direção de Arte: Henry Bumstead. Figurinos: Deborah Hopper.

10 de dez. de 2003

DOGMA DO AMOR

Nada como um filme depois do outro. A frase é feita, mas serve bem para o caso do dinarmaquês Thomas Vintenberg. Cinco anos depois do celebrado Festa de Família, único filme realmente bom daquela bobagem que se costuma chamar de Dogma 95, o cineasta nos entrega este It's All About Love (se o filme merecesse, eu falaria que o título brasileiro é o pior dos últimos dez anos...). O novo filme do diretor tem um problema grave: é um lixo. Os psicotrópicos de que Vintenberg tem abusado recentemente fizeram-no acreditar no sucesso de uma trama noir-urbano-maquiavélico-futurista, mas também devem tê-lo feito perder as aulas que tomaria com David Lynch.

A história que o dinamarquês pretende contar em Dogma de Amor não é apenas estapafúrdia e esquálida, mas é dotada de uma pretensão de níveis estratosféricos. Tudo começa quando um homem vai ao encontro da mulher, de quem está separado, para assinar os papéis do divórcio. O encontro que deveria acontecer num aeroporto é adiado sem explicação, o que gera uma sucessão de eventos esquisitos e o começo de uma trama mirabolante. Vintenberg deve ter assistido aos filmes de David Lynch muitas vezes. Copiou deles os cenários quase kitsch e os personagens grotescos. Tenta imitar as trilhas soturnas de Angelo Badalamenti e a edição sígnica de Mary Sweeney. Mas faltou talento e sobrou intenção.

A imbecilidade que emana do roteiro suga qualquer possibilidade de interpretação dos geralmente bons Joaquin Phoenix e Claire Danes. Da última vez em que eles estiveram juntos (no subestimado Reviravolta, 98, de Oliver Stone), o clima era tão fake quanto, mas o resultado ficou bem acima da média. Danes, quadruplicada, se encerra numa jaula de exageros dramáticos, e Phoenix simplesmente não consegue existir no filme. Vintenberg deve ter uma lábia e tanto para convencer o casal a topar um roteiro tão tosco e ainda conseguir uma ponta de Sean Penn, num papel tão sem razão de ser. O pior de tudo é tentar fazer o espectador acreditar que o filme é uma história de amor... diferente. Acho que ninguém caiu nessa, né?

Dogma de Amor
It's All Albout Love, EUA, 2003
Direção: Thomas Vintenberg.
Elenco: Joaquin Phoenix, Claire Danes, Sean Penn, Douglas Henshall, Alun Armstrong, Margo Martindale, Mark Strong, Geoffrey Hutchings, Sean-Michael Smith, Harry Ditson.
Roteiro: Mogens Rukov e Thomas Vinterberg. Produção: Birgitte Hald. Fotografia: Anthony Dod Mantle. Música: Nikolaj Egelund e Zbigniew Preisner. Direção de Arte: Ben van Os. Edição: Valdís Óskarsdóttir. Figurinos: Ellen Lens.

9 de dez. de 2003

SEGUNDA-FEIRA AO SOL

Em 2002, a Espanha surpreendeu a todos ao indicar oficialmente para concorrer ao Oscar o filme Segunda-Feira ao Sol, de Fernando Léon de Aranoa, em detrimento do célebre Fale com Ela, do mais célebre ainda Pedro Almodóvar. Os dois são filmes de macho, dirigidos por homens, estrelados por homens e sobre a vida de homens. O segundo solidifica a nova fase da carreira do mais conhecido cineasta espanhol, mais sério, mais sóbrio e melhor diretor. O primeiro é um filme de e com intenções sócio-políticas muito firmes, um filme engajado de um diretor quase desconhecido.

A revolta foi geral e, enquanto o candidato oficial da Espanha não chegou nem perto de uma das cinco vagas entre os melhores estrangeiros, a Academia não só indicou Almodóvar como melhor diretor e roteirista, como garantiu um prêmio no último quesito. Comparar dois filmes nunca é bom, mas no caso de obras que nasceram tão rivais parece, no mínimo, interessante. Ainda que completamente diferente, Segunda-Feira ao Sol é melhor que Fale com Ela. Principalmente porque, se o filme concorrente ratifica uma nova proposta de um bom cineasta, mas não é seu melhor trabalho, o longa de Aranoa é um caso raro de filme político que funciona.

Nesta área, o maior nome, ou pelo menos o mais conhecido, é o de Ken Loach. Mas Aranoa acerta onde Loach sempre falha: na humanização de seu cinema. Enquanto para Loach o cinema é arma contra a massa de manobra capitalista coercitiva e as ditaduras radicais, o filme para Aranoa é uma maneira de fazer justiça para as pessoas. E é justamente este trunfo, o de trabalhar personagem por personagem, sem concessões ao óbvio, que faz de Segunda-Feira ao Sol um filme quase sem parâmetros no cinema político atual.

Convenhamos que fazer um longa sobre homens que não conseguem arrumar um emprego depois de terem sido demitidos de um estaleiro parece pouco atraente para um público cada vez menos disposto ao exercício do pensamento, mas é justamente isso que o cineasta costura em seu filme: o mergulho no personagem, a identificação. Para isso, ampara-se numa interpretação dura e difícil de Javier Bardem, o melhor ator espanhol em atividade, que revela porque merece esse título na cena em que descobre o triste fim de um amigo. Bardem está ao lado de um elenco quase desconhecido, mas que esbanja intensidade semelhante a de sua interpretação. O filme de Aranoa pode não ser para todos como Fale com Ela e nem atingir seus propósitos na totalidade, mas faz o espectador parar por duas horas e pensar, sem perceber. E isso é bem raro.

Segunda-Feira ao Sol
Los Lunes al Sol, Espanha, 2002
Direção: Fernando Léon de Aranoa.
Elenco: Javier Bardem, Luis Tosam, José Angel Egigo, Nieve de Medina, Enrique Villén, Celso Bugallo, Aida Folch, Joaquín Climent, Serge Riaboukine, Laura Dominguez, Pepo Oliva, Andrés Lima.
Roteiro: Fernando Léon de Aranoa e Ignacio del Moral. Produção: Elías Querejeta e Jaume Rores. Fotografia: Alfredo F. Mayo. Música: Lucio Godoy. Direção de Arte: Julio Esteben. Edição: Nacho Ruiz Capillas. Figurinos: Maiki Marín.

8 de dez. de 2003

SIMPLESMENTE AMOR

God only knows what I'd be without you

Simplesmente Amor é um filme maniqueísta. Manipula o espectador o tempo inteiro com sua fórmula água com açúcar, que cobre boa parte do enorme universo de possibilidades de (des)encontros amorosos. O Short Cuts em forma de comédia romântica de Richard Curtis é tecido e conduzido com tanta disponibilidade para o encantamento que seu público-alvo imediato, mulheres e adolescentes, é bastante dilatado. Tudo por causa da armadilha de reconhecimento fácil que Curtis deixa bem na nossa frente. As cenas que abrem e fecham o filme, com pessoas reais, são a prova mais óbvia da artimanha do cineasta.

Toda a articulação do roteiro, no entanto, sua obviedade e condensação de clichês não significa nada. Absolutamente nada. Porque Richard Curtis, talvez sem saber, fez uma deliciosa ode ao mais puro dos sentimentos. A linguagem simples do filme é feita para se comunicar com o espectador numa mesa de bar (ou no balcão de um pub londrino) e é justamente isso que faz o filme ser tão fascinante. O amor que surge num segundo e mais demorado olhar, o amor que fica mudo mas nunca sai do lado, o amor que surge entre os personagens mais improváveis.

Simplesmente Amor é surpreendente porque seus chavões nunca deixam de funcionar. O elenco ajuda. Todos defendem seus papéis com dedicação. A delicadeza dos diálogos entre Martin Freeman e Joanna Page, enquanto fazem uma as cenas de um filme pornô são aqueles que você tem quando tenta se aproximar de alguém. É impossível não se identificar com pelo menos uma das histórias, com as dúvidas de Laura Linney, sempre ótima, ou de Hugh Grant, que volta a provar que é um bom ator, a busca adolescente de Kris Marshall por sexo, o silêncio dos cartazes de Chiwetel Ejiofor para dizer o que ele precisa dizer para quem ele quer dizer.

Richard Curtis, roteirista de Quatro Casamentos e um Funeral (94), programa seu filme pra encantar, mas faz isso de uma maneira tão deliciosa que é fácil esquecer-se disso. Sabe aquele olhar, as mãos dadas, ficar abraçado assistindo TV? Amor é isso, né? Aquela coisa inexplicável que comanda seus movimentos, toma conta do seu pensamento, deixa você feliz. Simplesmente Amor deve ser visto como um buquê de flores oferecido a alguém. E quando alguém te oferece flores, você aceita, né?

Simplesmente Amor
Love Actually, EUA, 2003.
Direção e Roteiro: Richard Curtis.
Elenco: Bill Nighy, Gregor Fisher, Colin Firth, Liam Neeson, Emma Thompson, Hugh Grant, Martine McCutcheon, Heike Makatsch , Kris Marshall, Keira Knightley, Chiwetel Ejiofor, Andrew Lincoln, Martin Freeman, Joanna Page, Sienna Guillory, Laura Linney, Julia Davis, Edward Hardwicke, Thomas Sangster, Alan Rickman, Rodrigo Santoro, Élizabeth Margoni, Lúcia Moniz, Billy Bob Thornton, Rowan Atkinson, Claudia Schiffer, Shannon Elizabeth, Denise Richards.
Produção: Tim Bevan, Eric Fellner e Duncan Kenworthy. Música: Craig Armstrong. Fotografia: Michael Coulter. Edição: Nick Moore. Direção de Arte: Jim Clay. Figurinos: Joanna Johnston.

3 de dez. de 2003

Matrix: o um, o dois, o três e o herói que volta a ser o que era

Herói. Vamos falar sobre esse cara. Herói é aquele que comete grandes feitos, geralmente com intenções muito boas. Herói é o cara que salva a criancinha do incêndio e o gato da árvore, e é aquele que prende o bandido, que também é conhecido como vilão. No fim das contas, o herói é o cara legal, aquele que faz o que é certo e justo apenas porque aquilo é certo e justo e não porque quer ganhar alguma coisa com isso. No geral, o herói de verdade nem liga de ser herói. Ele trabalha com uma missão e só encerra suas atividades quando ela está cumprida.

Eu sempre li quadrinhos, desde pequeno. Meu contato com os heróis, aqueles de metirinha, que salvam bem mais do que gatos em árvores, sempre foi intenso em quantidade e qualidade. O herói é uma figura necessária na formação da criança. Ele ajuda, na brincadeira, a definir caráteres, a mostrar certos e errados, por mais que essas definições sejam nebulosas. O herói clássico é um homem perfeito, larga tudo por sua missão... até um amor. Lois Lane que o diga. Até casar com o Superman, que na minha época ainda se chamava Super-Homem, foram anos, quase sessenta.

Os anos se passaram e os heróis mudaram. O mundo contemporâneo exigia um perfil diferente do nosso personagem. Ele ganhou dramas mais sólidos e comportamentos mais humanos. O herói deixou de ser infalível. Os X-Men iniciaram essa revolução ainda nos ano 60, criando personagens que lutavam muito mais por sua aceitação do que salvando o mundo. A graphic novel O Conflito de uma Raça (ou Deus Ama, o Homem Mata, relançada este ano no Brasil), possivelmente a mais bem escrita novela dos quadrinhos das majors norte-americanas, é o ápice desta batalha.

Os X-Men ganharam o cinema em 2000, mas o espírito de sua criação só apareceu no segundo longa-metragem estrelado pelo grupo, inspirado justamente na revista citada acima, que chegou às telas em abril de 2003. Este ano, por sinal, tem tido uma das maiores, talvez a maior, concentração de heróis na história do cinema. Heróis modernos, como os X-Men ou o Demolidor; quase anti-heróis como o Hulk; heróis à moda antiga como a turma de O Senhor dos Anéis; e heróis que vivem em cenários muito mais que contemporâneos, mas que são tão clássicos quanto o maior de todos eles, aquele que veio de Krypton.

Nesta última categoria, está incluído Neo, o protagonista da trilogia The Matrix, cujos últimos dois exemplares estrearam este ano nos cinemas. Quando surgiu em 1999, o filme original foi apontado como uma revolução na concepção de um longa de ficção-científica. Nem é tanto assim. Sua proposta de simulacros e simulações não é verdadeiramente uma novidade, mas não deixa de ser fascinante. A dominação pelas máquinas, no cinemão comercial, já era aventada no primeiro O Exterminador do Futuro e olha nós estávamos no longínquo ano de 1984. A revolução de The Matrix aparece em se aprofundar nesse universo. E, muito mais, na concepção visual que criou para contar sua história. Por mais que já se tenha dito (e se desdenhado tempos depois), os efeitos visuais, e junto com eles a direção de arte, os figurinos e a câmera do primeiro longa, são revolução pura.

A história criada pelos irmãos Wachowski, se não é original, é engenhosamente bem escrita. É inteligente, cheia de nuances (perdoem-me, mas eu acho nuança uma palavra muito feia) e, o mais importante, extremamente divertida. The Matrix resgata a figura clássica do herói, aquele da missão, e a transporta para um universo tecnológico alheio a ele, onde poderia se esperar um protagonista menos à antiga. A filosofia do filme, que recicla artes marciais e pensamento oriental, incomodou muita gente, mas ela não é o mote de The Matrix. Aqui, o que importa é o fato de que há um herói e um inimigo muito poderoso para ele derrotar - e que é muito divertido acompanhar sua odisséia.



Na época, 1999, o filme virou febre. Quase todo mundo falava bem, se impressionava com a proposta estética e com a filosofia do filme. Mas aí os Wachowski resolveram anunciar que The Matrix era uma trilogia. E quando The Matrix Reloaded chegou aos cinemas em maio deste ano, uma avalanche de críticas e acusações, se não infundadas, pouco consistentes, surgiram de todos os lados. Quando não se tem o que falar, se fala besteira. Uma delas nos informa de que o filme é incompleto, não tem fim. Bem, aos ingênuos o aviso de que quando um longa é o filme do meio de uma trilogia, ele lança deixas que somente vão ser concluídas num terceiro produto (nada muito complicado de entender para quem leu pelo menos uma série de quadrinhos). Ainda mais quando já se sabe de que o capítulo final estrearia seis meses depois.

A segunda bobagem insiste em comparar Reloaded ao original, chamando-o de fraco, sem força, sem novidade. Aqui, na minha opinião, a questão já é a inteligência artificial de quem teve a idéia de arrumar esse motivo para criticar o filme. Se The Matrix apresenta um universo inteiro, cheio de possibilidades, Reloaded não só não deveria ter essa função, como deveria - e o faz - investigar ainda mais esse novo universo. Talvez filosofe demais, mas será que essa é a questão principal? O argumento mais impressionante de todos é o dos efeitos visuais. Dizer que a cena da luta entre Neo e os cem agentes Smith é mal feita, CGI puro, e pouco empolgante sequer merece comentário.

Acho que existe muita mania de procurar agulha no palheiro norte-americano. Tudo que é símbolo da dominação dos malvadões ianques vira alvo fácil para críticas: seja a Coca-Cola, o Mickey Mouse ou o cinemão. E como o filme estreou logo depois da Guerra...



Novembro chegou e com ele veio The Matrix Revolutions. Engraçado. Muita gente que odiou o segundo filme, que o chamou de pior filme do ano, do mundo, do que o valha, disse que gostou do filme. Nem tudo está perdido. A conclusão da saga de Neo de sua luta contra as máquinas é um bom filme, tão divertido quanto seus antecessores. Primeiro, é neste longa que Neo assume sua função de herói clássico pincelada nos filmes anteriores. Aqui ele faz o que tem que fazer. Mas sua jornada até descobrir sua missão e executar seu papel é menos interessante que o resto do filme.

A seqüência da batalha entre homens e máquinas é adrenalina pura. E aproveita os clichês mais óbvios da forma mais empolgante possível. O coronel linha dura, a moça que luta para ajudar o namorado e o jovem idealista são personagens estereotipados até o extremo, mas vê-los em ação é absolutamente envolvente. São heróis comuns que realizam feitos grandiosos, mas que nesse filme não ganham destaque especial ou prêmios por suas performances. Até porque heróis não precisam de prêmios.

The Matrix Revolutions é uma conclusão coerente para a saga de Neo. Um filme que prende o espectador na cadeira. Não só por seus efeitos ou por seu visual. Mas porque sua história é daquelas simples, que fazem a gente torcer pelo herói. É claro que para isso é preciso se deixar viajar um pouquinho...

The Matrix
The Matrix, EUA, 1999.
Direção e Roteiro: Larry e Andy Wachowski.
Elenco: Keanu Reeves, Carrie-Ann Moss, Laurence Fishburne, Hugo Weaving, Anthony Zerbe, Joe Pantoliano, Marcus Chong, Gloria Foster.
Produção: Grant Hill e Joel Silver. Música: Don Davis. Fotografia: Bill Pope. Edição: Zach Staenberg. Direção de Arte: Owen Paterson. Figurinos: Kym Barrett.

The Matrix Reloaded
The Matrix Reloaded, EUA, 2003.
Direção e Roteiro: Larry e Andy Wachowski.
Elenco: Keanu Reeves, Carrie-Ann Moss, Laurence Fishburne, Hugo Weaving, Jada Pinkett Smith, Harold Perrineau Jr., Harry J. Lennix, Lachy Hulme, Peter Lamb, Nathaniel Lees, Gina Torres, Clayton Watson, Lambert Wilson, Anthony Zerbe, Mary Alice, Tanveer K. Atwal, Helmut Bakaitis, Monica Bellucci, Rachel Blackman, Ian Bliss, Sing Ngai, Essie Davis, Nona M. Gaye.
Produção: Grant Hill e Joel Silver. Música: Don Davis. Fotografia: Bill Pope. Edição: Zach Staenberg. Direção de Arte: Owen Paterson. Figurinos: Kym Barrett.

The Matrix Revolutions
The Matrix Revolutions, EUA, 2003.
Direção e Roteiro: Larry e Andy Wachowski.
Elenco: Keanu Reeves, Carrie-Ann Moss, Laurence Fishburne, Hugo Weaving, Jada Pinkett Smith, Harold Perrineau Jr., Harry J. Lennix, Lachy Hulme, Peter Lamb, Nathaniel Lees, Gina Torres, Clayton Watson, Lambert Wilson, Anthony Zerbe, Mary Alice, Tanveer K. Atwal, Helmut Bakaitis, Monica Bellucci, Rachel Blackman, Ian Bliss, Sing Ngai, Essie Davis, Nona M. Gaye.
Produção: Grant Hill e Joel Silver. Música: Don Davis. Fotografia: Bill Pope. Edição: Zach Staenberg. Direção de Arte: Owen Paterson. Figurinos: Kym Barrett.


 
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